Por nos tirar da zona de conforto e segurança, toda viagem nos transporta para novos níveis de percepção e consciência. Nunca voltamos do mesmo modo, sempre aprendemos algo novo. É como se saíssemos do nosso corpo e nos víssemos de fora, colocando nossa vida em perspectiva comparativa com aquilo que vemos e experimentamos enquanto viajamos.
“O mundo é um livro e aqueles que não viajam leem somente uma página”
— Santo Agostinho
No entanto, existem viagens, e existem “as” viagens. Algumas viagens não apenas nos ensinam, mas também nos transformam profundamente. Quanto mais desafiadores e diferentes forem a jornada e o destino, maior se torna o seu poder transformador. Quanto mais distante uma viagem for da nossa realidade cotidiana, maior o desafio para enfrentar o desconhecido, requerendo que lancemos mão da nossa criatividade e habilidades de relacionamento para solucionar problemas. Se eu não falo a mesma língua que o outro, mas preciso encontrar um posto de gasolina, tenho que tentar me expressar de outra forma, com mímicas ou desenhos, para resolver a situação. Muitas vezes, nossas habilidades ficam adormecidas e anestesiadas em ambientes familiares, pois param de ser usadas e exercitadas, pois já conhecemos tudo e todos. Talvez você não desenhe ou faça mímica há anos, certo? Quando navegamos em rumo ao desconhecido, despertamos e ativamos todos os nossos talentos e habilidades, nos aproximando do aproveitamento máximo de nosso potencial.
As viagens desafiadoras são como botões de reset nas nossas vidas, nos fazendo ser como crianças novamente, abrindo uma janela para o conhecimento e descoberta que trazem inúmeros benefícios para as nossas vidas profissionais. Vejamos o que acontece com os viajantes em uma nova jornada:
- Abertura de mente e coração — veem, pensam e experimentam o mundo pela primeira vez, sem preconceitos, despertando sentimentos e análises puras, genuínas. Percebi, por exemplo, na minha viagem mais recente à China (jul/2017), que os dias em que estive lá sem conexão à internet foram os mais cheios de paz que tive nos últimos tempos – certamente, isso era algo que eu não esperava e abriu um novo caminho de pensamento e investigação de comportamento para mim. Novas perspectivas, novas possibilidades, novos modos de agir inaugurados.
- Capacidade de análise, comparação e ajuste de valores — comparam o novo que acabam de experimentar com o que já têm e fazem anteriormente, abraçando novos valores melhores e descartando os antigos que não fazem mais sentido. Como dizia Henry Thoreau, “O que importa não é o que você olha; mas o que você vê”.
- Aumento de repertório – conforme viajam por novos lugares e situações, experimentam novas sensações e ampliam o repertório de vida nos 5 sentidos: tato, olfato, paladar, visão e audição; é importante lembrar que repertório é o fio construtor da criatividade.
- Colaboração — dependem dos outros para sobreviverem e terem sucesso em ambientes desconhecidos; da mesma forma que a criança depende dos pais e mentores, viajantes dependem de hosts e informações de outras pessoas. Assim, o desenvolvimento do espírito e das habilidades de colaboração são essenciais. Aprendi especialmente que, não é necessária uma língua em comum quando as pessoas têm interesse em ajudar, e que não adianta ter uma língua em comum quando não existe boa vontade.
- Humildade — não importa o quão importante ou insignificante sejamos na nossa vida em nosso lugar de origem, viajando para lugares desconhecidos nos tornamos todos iguais, pois o que conhecemos previamente não tem valor algum aqui. É como não ter história pregressa ainda, como uma criança, que ainda não tem histórico passado.
- Aprendizagem – em ambientes e situações que não conheço, preciso aprender para sobreviver. Aprendizagem é a habilidade essencial para vencer novos desafios.
- Experimentação – quando faço uma coisa inédita, que nunca fiz antes, o resultado é incerto. O uso da habilidade essencial de tentativa e erro, por meio de um caminho de experimentação, nos leva a criar métodos e processos para solucionar nossos problemas.
- Tolerância e resiliência – quando enfrentamos o desconhecido, sabemos que não controlamos o nosso entorno e nem tudo que fizermos dará certo. Estamos sujeitos constantemente a fatos inesperados, que precisamos aceitar (tolerância) e, quando não conseguirmos resolver, tentar novamente (resiliência).
- Criatividade — a habilidade básica para solucionar problemas novos é a criatividade. Ambientes e situações desconhecidos são um campo de novos problemas e necessidade para improvisar.
- Automotivação (força de vontade e perseverança) – em ambientes desafiadores, precisamos de energia constante para conseguirmos sobreviver. Quem tem preguiça e para, deixa de crescer e morre.
- Foco e presença – ao contrário do nosso ambiente familiar, que dominamos e estruturamos ao longo da vida, nas viagens estamos sujeitos a inúmeros fatores novos, que não dominamos e que desviam a nossa atenção. A única forma de sobreviver é focando no que é necessário em cada instante — cabeça no momento, no presente.
- Superação – quanto maior o desafio enfrentado em uma viagem, mais fortes nos tornamos. Fazer coisas que normalmente não fazemos no nosso cotidiano, como visitar lugares inóspitos ou longínquos, trilhas e escaladas, etc., revelam forças e habilidades interiores que muitas vezes não imaginávamos que tínhamos, nos fortalecendo. Percebemos que podemos muito mais do que estamos acostumados a fazer. Em minhas viagens, listo as seguintes experiências nessa categoria – coisas que jamais achei que seria capaz de fazer e fiz viajando (algumas, para minha surpresa, foram bastante fáceis): escalar a cachoeira Dun’s River Falls na Jamaica em 1998; nadar com raias em Gran Cayman em 1998; viajar uma semana sozinha pelo Sri Lanka em 2008, quando eles ainda estavam em guerra civil; viajar sozinha para Macchu Pichu em 2003, visitando sítios arqueológicos e locais remotos no interior do Peru; fazer a transiberiana de Moscow a Beijing em 2017, em trens comerciais usados pelos locais, sem banho e restaurante por dias e tendo que se virar sem nenhuma pessoa ao seu redor que falasse qualquer língua em comum; trilhas na neve na Islândia, em 2015; ficar sem conexão com a internet por 3 dias em Beijing, em 2017; perder voos ou conexões devido a nevascas e ter que encontrar novas soluções para chegar ao destino; ficar retida sozinha por horas em sala de checagem pela polícia de fronteira para entrada em outro país, entre outros.
Além dos benefícios acima, estudos mostram ainda que é mais feliz quem viaja e tem experiências do que aqueles que apenas compram coisas. O prazer das coisas é passageiro, enquanto o das experiências nos acompanha na memória e no coração por toda a vida.
Assim, a minha recomendação para qualquer pessoa que queira dar uma turbinada na carreira é fazer uma viagem desafiadora. Não precisa ser longe, mas diferente. Não precisa ser longa, mas profunda. Pode ser para qualquer lugar, desde que seja também para dentro do seu ser.
“A verdadeira viagem de descoberta não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos”
— Marcel Proust
* Texto retirado do blog do Martha Gabriel e reproduzido aqui no Clube do Palestrante.
Foto de capa: Louis Hansel