Temos visto e sentido a disseminação tecnolĂłgica acontecendo em ritmo de crescimento exponencial na sociedade, mas, muitas vezes, nĂŁo percebemos a revolução silenciosa e invisĂvel que a acompanha, transformando e modificando o polo de valores de nossas vidas.
Quando a internet era jovem, no final do sĂ©culo passado, existia um entusiasmo com as possibilidades de conexĂŁo entre pessoas e informaçÔes em qualquer lugar do planeta. Conforme a web foi se expandindo, tambĂ©m foi crescendo a quantidade de pessoas e objetos conectadas a ela e, hoje, isso inclui virtualmente todo tipo de dispositivo: carros, geladeiras, termostatos, casas, semĂĄforos, lĂąmpadas, ou seja, qualquer tipo de objeto, inclusive os pessoais, como roupas e Ăłculos, por exemplo, alĂ©m, claro, do poderoso smartphone. Essa Ă© a tĂŁo falada âInternet of Everythingâ, termo cunhado por Kevin Ashton em 1999, na qual qualquer coisa dotada de sensores, consegue âsentirâ o seu ambiente e se comunicar tanto com outras coisas, quanto com seus donos ou outras pessoas. Com isso, todas as coisas passam a ser âsmartâ, ou seja, adquirem uma camada de informação que as permite operar de forma mais inteligente. Desse modo, portanto, a inteligĂȘncia das coisas tem aumentado no mundo ao nosso redor.
Por um lado, tudo isso Ă© extremamente excitante, pois permite uma inĂ©dita otimização de recursos na histĂłria da humanidade. Geladeiras que nos informam quando um produto acabou ou perdeu a validade e que faça pedidos automaticamente aos supermercados; cidades que conseguem prever epidemias e manifestaçÔes em função da movimentação nas ruas e dados comportamentais; termostatos que regulam a temperatura do ambiente em função da quantidade de pessoas no mesmo; cordas, tĂȘnis, raquetes e patinetes que medem nossa performance durante o seu uso para nos ajudar a melhorĂĄ-la; escovas de dentes que nos informam a melhor maneira de escovar; camisas que analisam nossa saĂșde; e mais uma infinidade de possibilidades de otimizaçÔes.
Por outro lado, no entanto, conforme a âInternet of Everythingâ avança, precisamos nos conscientizar de que tudo o que fazemos, os lugares que visitamos, bem como o modo que vivemos, compramos, nos divertimos e aprendemos foram profundamente transformados por essa conexĂŁo inteligente entre tudo. A onipresença e onisciĂȘncia da internet invade todos os aspectos das nossas vidas, num processo em que estamos cada vez mais âvisĂveisâ na rede. Esse Ă© o trade-off da otimização e personalização: quanto mais informaçÔes pessoais fornecemos, mais eficiente e rico Ă© o processo. Nesse contexto, torna-se cada vez mais difĂcil (e em alguns casos, impossĂvel) ter privacidade. Por exemplo, se a sua camisa âsmartâ envia alertas sobre a sua saĂșde automaticamente para o seu mĂ©dico, ela pode tambĂ©m informar os fabricantes de remĂ©dios sobre a sua situação. Cada vez mais empresas empreendedoras estarĂŁo minerando o campo da internet of everything em busca de oportunidades de personalização e otimização. Certamente veremos nos prĂłximos anos uma âcorrida do ouroâ nessa ĂĄrea minando cada vez mais a privacidade.
AlĂ©m da ubiquidade que nos vĂȘ o tempo todo, o novo cenĂĄrio tecnolĂłgico traz tambĂ©m mais dois impactos profundos: 1) a tecnologia nos entretĂ©m cada vez mais ininterruptamente, em todas as dimensĂ”es da nossa existĂȘncia; 2) a tecnologia permite que haja muito mais fluxos de comunicação e aparelhos emitindo sons e barulho em qualquer lugar o tempo todo ao nosso redor. As consequĂȘncias disso Ă© que, alĂ©m de privacidade, temos tambĂ©m cada vez menos tempo e silĂȘncio em nossas vidas.
O aparato tecnolĂłgico ampliou consideravelmente a quantidade de coisas que temos para fazer tanto no trabalho quanto em casa. Por exemplo, antigamente tĂnhamos apenas uma dĂșzia de canais de televisĂŁo para assistir, enquanto hoje, temos milhares. Antes tĂnhamos alguns jogos de tabuleiro, hoje temos milhares de jogos online. AlĂ©m disso, devido ao seu papel de desintermediação, hoje fazemos muito mais coisas que no passado â esse Ă© o caso dos supermercados, em que alĂ©m de pegar os produtos, tambĂ©m pesamos, embalamos e processamos o pagamento. Ou quando fazemos check-in em voos e hotĂ©is â antes alguĂ©m nos atendia, hoje fazemos a entrada de dados, escolha de assentos/quartos, imprimimos o boarding pass e o escaneamos na entrada do aviĂŁo. E assim por diante. Quanto mais dispositivos conectados, mais coisas para fazer, e menos tempo para tudo. Assim, a gestĂŁo do tempo passa a ser uma das principais habilidades humanas hoje.
Uma conclusĂŁo Ăłbvia Ă© de que todos esses dispositivos podem emitir sons, conteĂșdos e informaçÔes (por exemplo, a sua camisa âsmartâ enviou informaçÔes sobre a sua situação para fabricantes de remĂ©dio, que poderĂŁo, eventualmente te contatar), bem como habilitar o prĂłprio ser humano a se comunicar em qualquer lugar, aumentando a poluição sonora. No entanto, alĂ©m disso, a tecnologia tambĂ©m alavancou o crescimento populacional e a urbanização no planeta, aumentando cada vez mais a densidade de pessoas e coisas praticando emissĂ”es sonoras ao nosso redor: televisĂ”es e monitores ligados em todos ambientes, pessoas usando seus smartphones (tanto para conversar quanto para ver e ouvir os seus conteĂșdos), alertas de sensores de carros, fornos, telefones, aplicativos, etc. Assim, o silĂȘncio estĂĄ se tornando uma raridade.
Sabemos que em cada momento da histĂłria, a escassez sempre determinou o valor das coisas â quanto mais escassa, mais valiosa. Partindo desse princĂpio, acredito que nos prĂłximos anos nos daremos conta que, em função da transformação tecnolĂłgica em nossas vidas, os artigos de luxo do sĂ©culo XXI serĂŁo a privacidade, o tempo e o silĂȘncio. SerĂĄ que temos consciĂȘncia e estamos preparados para isso?
* O texto ‘Luxos do sĂ©culo XXI: Privacidade; tempo e silĂȘncio’ foi retirado do blog da Martha Gabriel e reproduzido aqui no Clube do Palestrante.
Foto de capa: Jazael Melgoza