Dê um Google com o nome Mario Sérgio Cortella: em menos de um minuto, ele soma 308 mil resultados. Popularidade nas alturas, oráculo para leitores e interessados nas áreas de filosofia e educação do Brasil.
O filósofo, escritor e educador que trabalhou com o pedagogo Paulo Freire lota auditórios, vende milhares livros e, sobretudo, provoca o tempo todo. Faz da indagação o direito de avanço das conquistas coletivas. Nesta entrevista, ele reforça seu pensamento em torno da potência de se fazer perguntas e a possibilidade de reinvenção da ética, da cidadania e do convívio civilizatório.
Pioneiro: Qual a potência da educação no Brasil e no mundo hoje?
Mario Sergio Cortella: A gente não deve mesclar educação com escola. Educação envolve família, lazer, mídia, igrejas, sindicatos e claro, escolas. Se entendermos educação com a escolarização, neste momento, no Ocidente, estamos vivendo um tempo inédito. Temos hoje plataformas muito mais velozes de acesso à informação, numa redução da autonomia da construção do conhecimento. Muita gente diz hoje que vivemos a era do conhecimento. Isso é curioso pois nós sempre vivemos a era do conhecimento. Do contrário teríamos falecido todos enquanto espécie. O que vivemos de novo, e isso é inédito e bom, é uma forma de simultaneidade, instantaneidade e mobilidade no acesso à informação. No entanto, não se confunda informação com conhecimento. Informação é a base do conhecimento. Mas, atenção, às vezes você soterra alguém com informação e acha que ele está tendo conhecimento. É estranho até supor que alguém tenha acesso a milhões de dados e isso não possa gerar autonomia. No entanto é um momento riquíssimo para a área da educação escolar, pois nunca tivemos tanta disponibilização de estruturas para a elevação desse conhecimento. Portanto, é um momento riquíssimo para o Ocidente, que nos configura e permite essa condição mais elevada. E isso se não deixarmos de lado algo que é muito perigoso, que é o choque inter-secular: nossos alunos são do Século 21 e nós, docentes, somos do Século 20, e as disciplinas e metodologias são do Século 19. Portanto, essa colisão inter-secular pode conduzir a uma condição anacrônica, fora do tempo, daquilo que poderia nos colocar num grande momento do futuro, mas nos deixa fincados no passado ainda resistente.
Como andar nesse vácuo?
Hoje há uma multiplicidade de possibilidades. Há cem anos a vida média era 42 anos. Aos 22, estávamos na metade da vida. Há 50 anos, a vida média era de 60. Portanto, infância e adolescência não eram tão considerados como hoje o são. A extensão da expectativa de vida estende a adolescência para até quase os 30 anos. O modo de formação também ficou diferenciado. Era decisivo, há 50 anos, que eu escolhesse uma rota e dela não me desviasse. Hoje, é possível mudar de ramo, sair do agronegócio para fazer gastronomia. Isto é: não há uma relação direta entre graduação e ocupação. Por isso, a grande novidade é uma imensa liberdade de escolha e uma absoluta restrição de ação. As regras são muito fechadas num mundo globalizado, em que os investimentos de capital mudam com muita rapidez. Não há mais uma rota mais serena em algumas trajetórias. E a educação sofre no meio disso tudo.
Que provocações filosóficas o Brasil pede?
Temos de viver uma alegria cívica. Nós estamos vivendo um momento especial, absolutamente pedagógico em nossa história. Um país de 516 anos neste ano que ainda não tem uma democracia de 30 anos. Nem oito por cento de nossa história são de um período democrático. Portanto, é necessário ter afeto pela democracia. Não o temos. Mal ela começa a nos dar trabalho e nós queremos dela nos libertar. Nossa capacidade de cuidar da democracia, que é trabalhosa, é restrita. Mas estamos começando a fazer. O momento é alegre, de turbulência e dores. São as dores do parto. Estamos dando à luz uma nova nação, que poderá ser melhor do que tivemos a depender das nossas escolhas. Mas poderá também não sê-lo. Não existe regra marcada. Mas, no campo da formação, nunca tivemos uma ocasião tão especial para isso. Dia desses, no Rio, numa área de muitos bares do Centro, eram 15h, e as pessoas se acotovelavam num balcão, assistindo pela tevê o julgamento do Supremo. Em que nação as pessoas fazem isso? De repente as pessoas começam a discutir condução coercitiva, não só samba ou futebol. Há uma agregação, novas reflexões que não tínhamos. Por isso, é um momento muito difícil, confuso, que, mais do que complexo, inclui um excesso de variáveis.
Nos últimos dias, as ruas do Brasil mostram muita intolerância?
Esse também é o aprendizado. É a nossa capacidade de entender que não queremos nem a paz dos cemitérios, que nos traz a impossibilidade de ação, nem o clima de guerra civil em que as pessoas, quando se aproximam uma das outras, fazem uma pergunta que impede qualquer diálogo, que é: de que lado você está? Quando eu começo um encontro com essa indagação, eu estou bloqueando qualquer possibilidade de comunicação. Nessa hora, nosso aprendizado é mais lento. Na nossa formação nacional, poucos foram os movimentos de participação popular. Portanto, os modos democráticos de convivência permitem conflitos de ideias, mas não confrontos, que não são desejáveis. O confronto pode beirar à guerra civil que, a história mostra, não tem sobrevivente ou vencedor. Nosso aprendizado, hoje, exige inteligência política não só das elites, também dos formadores de opinião e das lideranças todas para evitar a degradação da nação.
A mídia tem mesmo um poder forte na sociedade?
A mídia é um formador pedagógico, é o grande pedagogo do nosso cotidiano. É ela que forma, informa, deforma, transforma. Afinal, uma criança fica em média quatro horas na escola e seis, no mínimo, diante de algum veículo de mídia com sua maneira de comunicação muito mais poderosa. Isso é muito forte na formação da realidade, é uma simulação incrível daquilo que precisamos no dia a dia. Mas ela não é exclusiva nem imbatível. Sem a mídia, não haveria democracia. Nossa democracia hoje é sustentada em dois pilares. Primeiro, instituições mais sólidas no campo do Judiciário e do Executivo, e que apura, no caso do Ministério Público. Outra instância é a imprensa livre e as plataformas digitais. Para usar a palavra clássica, investigação. Em latim, “investigare” é buscar vestígios. Todos deixamos vestígios digitais do que fazemos. Portanto, mundo digital, imprensa instituições mais sólidas e operantes, com tarefas de Estado claras, permitem isso. Isso opera desde os anos 1970. O Brasil extinguiu a paralisia infantil em 1994 graças às campanhas de vacinação do Zé Gotinha e da Xuxa. Portanto, não é uma demonização, mas também não é uma angelização. A mídia é uma instituição social como a escola, a empresa, a estrutura pública, que tem várias faces.
Vai bem a escola brasileira?
Nos últimos 30 anos, ela começou a sair da indigência. Saiu da UTI, tá na enfermaria, e, talvez, quando completarmos 200 anos de nossa independência, possa chegar a outros patamares. A crise atual perturbou uma rota que poderia ser boa. Fomos também atingidos por algo que não dependia de nós, que é a redução do custo do barril de petróleo. Isso pegou em cheio o Pré-Sal, que seria independentemente de governo, por legislação, é uma forma de investir na educação. Nos dois governos do FHC, nos dois do Lula e no primeiro da Dilma, pois neste segundo não deu pra fazer quase nada, tivemos um avanço muito grande em termos universalização do acesso, de estruturas de permanência, de financiamentos. Nunca se teve tanta condição de ter pessoas no ensino superior. Nesse sentido, numa democracia, quantidade total é sinal de qualidade social. Qualidade sem quantidade não é qualidade, é privilégio. Temos uma estrada longa, mas não é mais catastrófico, nem triunfalista. É absolutamente animador o que aconteceu nas três décadas mais recentes.
O que faria Paulo Freire?
Seria um defensor forte da democracia, investiria na área de formação de jovens e adultos analfabetos com mais de 15 anos e, sem dúvidas, investiria na formação docente, continuada, não episódica.
Qual a grande pergunta de um filósofo hoje?
A grande pergunta é: por que? É preciso colocar um grande ponto de interrogação em tudo. Colocar esse ponto de interrogação num daqueles carimbos de antigamente e ficar carimbando tudo com isso. Se alguém diz que é inocente: ponto de interrogação! Impeachment já: carimbo! Não vai ter golpe: carimbo! Isto é, temos de colocar a capacidade de instituir a suspeita. Não como método de descrença absoluta, mas como a possibilidade de construir uma certeza mais sólida. A grande pergunta é como fazê-la de uma forma contumaz e ao mesmo tempo determinada, para impedir que a gente tenha uma vida robótica, automática. Mas, acima de tudo, há um grande sonho, de fazer uma grande nação daqui a 20, 30 anos. A grande pergunta, na verdade, é: e eu com isso?
O filósofo Mario Sergio Cortella esteve em Caxias no final de março, a convite da Associação de Pais e Mestres do Colégio La Salle Carmo. Segundo o presidente da APM, Rubens Bonetto a iniciativa reforça a intenção do grupo, de promover integração entre família e escola, como forma de melhor educar as crianças e os jovens.
* Texto retirado do blog do Mario Sergio Cortella e reproduzido aqui no Clube do Palestrante.
Foto de capa: Kenny Eliason